O que é micro-tensão, e como usá-la com sucesso

Você já leu uma história e teve a impressão de que parecia não acontecer nada? Quer dizer, até tinha uma história….mas não havia drama, movimento, eventos, surpresas, suspense? O crime estava lá, como estavam as brigas e afins, só não tinha o cabelo arrepiado atrás da nuca nem o canto da unha esfolado. E então você larga o livro (sou da turma que termina qualquer coisa, até livro ruim), abre um novo e BAM! Acontece o contrário: mesmo sem crime ou brigas havia algo. Um tipo de suspense velado, um nervoso incômodo, uma estranheza que não deixa você tirar os olhos das páginas.

Pois é. Quando uma história tem micro-tensão, ela segura a gente. Quando não tem, o livro escorrega.

Ah, você pensa, mas esse post é sobre suspense? Eu escrevo romances, suspense não tem nada a ver comigo.

Engano seu, minha (meu) cara(o) amiga (o) escritora: não importa o que você escreve – fantasia, ficção científica, romance ou novela mexicana: suspense é antecipação, e antecipação é a alma de uma história.

Ludovico beijará Rosinalva? O pai dela descobrirá o tórrido romance entre os dois? Ele conseguirá matar Edivandro, o antigo amante de sua amada?

Você já deve ter feito uma ideia.

Microtensão é o motivo pelo qual seu leitor vira as páginas de um livro.

Quando nossos leitores dizem que uma história está “devagar”, “pouco interessante” ou “morna”, eles estão na verdade incomodados com a falta de tensão e suspense nas páginas. Não, não faltou mais cenas de sexo ou mais explosões de carros; não faltou mais diálogos, ou mais capítulos. Só faltou tensão, mesmo.

Mas se suspense é bom, por que micro-suspense é melhor ?

Geralmente é o contrário, né? Se algo é bom, a mesma coisa bem maior é melhor. Como é que micro seria bom?

A melhor maneira de entender o que é micro-suspense é lembrar daquela vez em que seu (sua) namorado(a), com quem você não está lá no seu melhor mês, manda a seguinte mensagem:

“Precisamos conversar”

Isso é tensão.

 

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Se até aquele segundo do seu dia você não parecia preocupado(a) com o destino de seu romance, agora ele ocupa absolutamente cada milímetro percorrido pelas suas sinapses aceleradas. Cada gesto que você desempenha durante a tarde entediante no escritório. Enquanto você passa o e-mail que o chefe pediu, você escaneia o histórico de emails que o bofe te mandou nos últimos tempos. Você conta duzentos em maio, cento e treze em junho e três em julho. Insatisfeito(a), você saca o celular, finge que está com dor de barriga (a essas alturas é bem provável que você esteja com dor de barriga) e constata, no escuro do banheiro, que ele(a) realmente andou mandando menos mensagens nas últimas semanas. Na hora do almoço você conversa com o pessoal em modo automático: hum-hum, claro – enquanto a cabeça solta fumaça de tanto imaginar cenários absurdos e agora prováveis [elocubrações sem fim são elementos da micro-tensão!].

Ele vai te deixar. Ele está com outra(o). Você deveria ter roubado o celular dele e checado suas mensagens quando teve a chance.

Nesse ínterim, o imenso relógio que paira sobre a mesa do chefe tiquetaqueia os segundos que se arrastam [passagens de tempo são recursos da micro-tensão ]. Sua cabeça parece mais quente que a caneca de café, e a mão não para quieta. Seu coração? Este está a beira de um colapso  [dica: escreva muita exposição sobre o efeito da situação sobre as reações do seu corpo, sempre!]

Enquanto você pensa nisso, lembranças aumentam o desconforto geral. O fim de semana que o amado tirou para si, alegando stress (e sumiu por dois dias inteiros) já não parecem mais tão “ok”. Você, moderninho(a), defensor (a) dos direitos do(a) amado(a) fazer o que bem entender, agora se sente meio idiota [aliás, pequenos mistérios e micro-tensão: um casamento de sucesso].

Em meio a isso e aquilo, você se lembra de todos os anos em que ele (a) lhe surpreendeu com delicadezas e flores. Você sente amor, e seus olhos encharcam. Então você pensa sem querer nos toques que não se encontram mais, e como vocês deixaram de conversar nas longas viagens de carro que agora só ocasionalmente fazem [comparações de antes e depois situam o leitor na situação e ajudam a colocar a pulga atrás da orelha]. Há algo estranho no ar. E aí você olha para o lado e vê sua amiga com o puta anel que ganhou do noivo, um homem mega apaixonado, e você sente que pode chorar outra vez [micro-tensão e conflitos internos: tudo a ver]

Você sente que a menina de vez em quando checa seu dedo para ver se entrou um anel ali [ os outros estão sentindo algo no ar, coisa que você demorou a captar]. Nada. Você olha com o canto de olho para a tela do celular às escuras. Você morde os lábios e tenta terminar o e-mail que o chefe pediu para escrever. Você digita, ao invés do nome do chefe, o nome do(a) amado(a). [todos esses detalhes sutis aumentam a tensão sem que você precise detalhar o quão ansioso realmente está – na verdade, você não precisa usar nenhuma vez a palavra “tenso” aqui].

Finalmente, à noite, o casal se encontra. Você, escritor, quer resolver aquela situação, quer dar um momento de alívio para o leitor. No entanto, se você conseguir em meio a todo esse drama colocar sua protagonista na frente do (a) namorado(a) sem colapsar/brigar/se entender, ponto extra para você.

O motivo?

Todos esperam à essas alturas que a(o) namorada(o) desconfiada(o) “chegue chegando quando encontrá-lo(a): ela vai verbalizar tudo que não verbalizou até o momento, e tudo ficará às claras – para o bem ou para o mal. Assim que a situação se resolver, o leitor respirará aliviado.

Respirar aliviado é ruim (a menos que seu livro esteja no fim)

Se você conseguir empurrar a tensão só mais um pouquinho adiante, só por mais algumas poucas páginas até que nossa protagonista finalmente resolva esse mistério – ele a ama ou não? Está com outra(o) ou não? Viajou para trai-la ou não? – o leitor continuará à beira do assento, querendo matar você.

Sei que você não quer morrer. Ninguém quer. Mas você quer vender, certo?

Sei também que é difícil, que os leitores de hoje estão super ansiosos, mas deixe que os pequenos gestos tomem conta da situação, pelo menos uma vez. No caso da sua história, deixe que o casal se encontre, que a casa esteja em silêncio, que algo cozinhe no fogo (olha a metáfora: sempre que possível, coloque o que cozinha dentro do peito ou ferve na cabeça na paisagem ao redor) que o silêncio pareça audível no cômodo. Deixe que ocorra uma comunicação sem palavras. Que o namorado(a) lance um olhar rápido demais para a foto que a protagonista tem de sua melhor amiga. Os olhos da protagonista se apertam. Deixe que as memórias enganem-a um pouco mais, e que ela não consiga rastrear os passos da amiga naquele mesmo fim de semana em que o amado sumiu. Deixe que ele perceba que seu olhar foi notado. Que ela saiba que ele notou. Que ele perceba que ela sabe.

Quer matar todo mundo de raiva, nervoso, ansiedade?

Insira um evento externo com o qual ninguém contava: faça o telefone tocar no cômodo, e uma voz chorosa dizer que a melhor amiga sofreu um acidente.

Unhas roídas, cabelos arrancados. Cada gesto do namorado a partir de agora, cada suspiro que ele der será um alerta vermelho para o leitor (Machado de Assis, rei da micro-tensão em Dom Casmurro que o diga). Cada gesto terá o potencial de vários significados, e eu duvido que seu leitor largue o seu livro pela Netflix.

Prepare-se: seus leitores vão te odiar, depois te amar, depois te odiar, e se você tiver um segundo livro, ele vai comprar – ele sabe que você entende dos paranauês.

Finalizando, fica aqui um resumão: que ingredientes fazem parte da receita dessa tal micro-tensão? O que causa pequenas tensões no texto, e nos dão a chance de segurar nossos leitores até o fim do livro?

Segue aí algumas, e continue a pensar em situações do nosso dia a dia que podem aumentar essa lista:

  1. Múltiplos e minúsculos mistérios;
  2. Padrões atípicos, sinalizando o potencial de perigo ou alerta;
  3. Situações que façam surgir conflitos internos;
  4. Tensão escalada pelos elementos ao redor: tique taque do relógio, chaleira no fogo, chuva batendo no telhado, etc;
  5. Manter alguns conflitos no nível inconsciente (nada como um mal estar sem explicação para deixar o leitor em alerta);
  6. Subtexto;
  7. Falta de respostas concretas (o namorado era ou não um traidor? A namorada era ou não paranóica? Lembra do Bentinho e da Capitu? Então…)
  8. “Atrito emocional” entre personagens sem que eles sejam inimigos;
  9. Nos diálogos, mostre descrença; questione metas ou planos. Insira desdém, aversão, desprezo.
  10. Quebre o clichê da ação –> embate –> solução. Quando a solução é apresentada cedo demais, o leitor sente que já sabe como vai terminar aquilo.
  11. Traga os sentimentos e emoções para o corpo, concentrando-se em emoções sutis ao invés de óbvias.
  12. Interrompa pensamentos, sentimentos e emoções que parecem estar levando o personagem a resolver a charada, algo do tipo: “Saquei tudo. Então é assim que ele está…” – E aí ele ou ela é interrompido pelo chefe, ou um telefonema…

 

Micro tensão é o que eu odeio amar em livros por aí. Eu quase matei a Suzanne Collins quando li Jogos Vorazes: ela não me deixava ter uma vida! Por outro lado, detestei o livro A Garota do Lago, do Charlie Donlea – faltou micro tensão.

Algum livro deixou você sentado de castigo na beira do assento? Algum livro cheio de micro tensão maravilhoso para me indicar? Estou mais que aberta à sugestões!

 

Um abraço apertado e fiquem na luz!

 

Assinatura Karina

Fontes: http://writerunboxed.com/2014/10/20/deconstructing-micro-tension/ e http://www.ian-irvine.com/on-writing/41-ways-to-create-and-heighten-suspense/

Imagem: reprodução

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