A Jornada do Herói: A Recusa do Chamado

Imagine se alguém batesse à sua porta exatamente hoje – você discutiu com o namorado, o porteiro acabou de entregar um recado desaforado do síndico porque seu cachorro fez xixi no elevador, e a escola ligou dizendo que seu filho vai ficar de recuperação. Ao abrir a porta,  você se depara com um convite à aventura. Para hoje. Agora.

Imaginou?

O que você responderia?

Não , claro que não! Tenho obrigações, estou chateada, preciso pensar em como pagar um professor particular pro menino. Não dá para responder a nenhum Chamado.

Ponha-se na situação do seu herói. Alguém está pedindo que eu responda “sim” a uma grande incógnita, a uma aventura que promete emoção, claro, mas são tantas as coisas que me seguram ( e seguram o herói!) na vida ordinária que dizer não é o esperado. (Se bem que  tem dias que, se me chamassem, eu pediria só uns minutinhos pra arrumar a mala)

Afinal, o chamado promete emoção… Promete algo maior que os problemas cotidianos, que o ordinário, que o mundano.

Você está diante de um limiar de medo, e uma reação compreensível é hesitar, ou mesmo recusar o Chamado. Vogler chama esse momento de “parada na estrada”. Essa parada, antes que a jornada realmente comece, “desempenha uma função dramática importante, mostrando à platéia que a aventura é perigosa e cheia de riscos. Não é uma brincadeira frívola, mas um jogo de alto risco, carregado de perigos, no qual o herói pode perder a fortuna ou a vida. A pausa para medir as conseqüências faz com que o engajamento na aventura seja uma verdadeira escolha, na qual o herói, após este período de hesitação ou recusa, dispõe-se a jogar a vida contra a possibilidade de atingir sua meta. Também obriga o herói a examinar a busca com cuidado e, talvez, a redefinir seus objetivos.”

Qual é a função teórica de recusar o chamado em uma história?

Lembra lá na Bíblia, quando Cristo, na véspera da sua morte, suplica: “Afasta de mim este cálice?” Ele tentou evitar o sacrifício. Vamos a outro exemplo: no filme Um Crime de Mestre, já mencionado aqui antes, o promotor está com um super emprego engatilhado, e não quer se meter em um caso de assassinato passional.

Essa recusa serve para nos identificarmos com os personagens. Eles são humanos, oras. Tem medos e ambições, tem pena, rancor, ou simplesmente uma vida ordinária para levar adiante. (Identificação = emoção = mais leitura)

Uma outra razão para a Recusa é a experiência anterior do herói. Os heróis já viveram aquilo. Sabem bem a loucura de se meter nessas situações, e o risco que correm.

“O protesto continua até que a recusa é superada, seja por alguma motivação mais forte (como a morte ou seqüestro de um amigo ou parente), que aumenta o risco que está em jogo, seja pelo inato gosto por aventuras do herói, ou sua noção de honra.”

Detetives e amantes podem recusar o Chamado aludindo a experiências que os tornaram mais tristes, porém mais sábios. Assistir à relutância do herói ser superada e finalmente vencida traz emoção ao leitor. Traz esperança e  torcida.

Mas cuidado: o herói não pode recusar demais

“A Recusa persistente pode ser desastrosa. Na Bíblia, a mulher de Ló é transformada em estátua de sal por ter recusado o Chamado de Deus para deixar sua casa em Sodoma e não olhar para trás. Olhar para trás, mergulhar no passado e negar a realidade são formas de Recusa.”

Um exemplo de recusa que acabou em tragédia é a do Rei Minos, monarca de Creta. Tudo começou quando Poseidon, Senhor dos Mares, enviou-lhe um belo touro branco, pedindo que ele sacrificasse a criatura para ele. Depois de ver o ser Magnífico, Minos decide que não consegue fazer o que o deus pede e mantém o touro como um troféu pessoal.

Enfurecido, Poseidon faz com que a esposa de Minos se apaixone pela besta, e o resto desta história é proibida para menores. O resultado todos conhecem: nascia assim o Minotauro.

Recusas negativas x Recusas positivas

Nem toda recusa é negativa para o progresso do herói. Existem casos especiais em que a recusa é uma jogada sábia e traz resultados positivos. “Quando o Chamado é uma tentação em direção ao mal, ou uma sedução ao desastre, o herói é inteligente se disser que não”.

No filme A morte lhe cai bem (um dos filmes mais divertidos que já vi, com Bruce Willis, Merryl Streep e Goldie Hawn), Bruce Willis recebe vários chamados tentadores para beber a poção mágica da imortalidade. Apesar de toda a sedução ele prefere não ceder, e, assim, salva a própria alma.

 Apesar de toda a sedução ele prefere não ceder, e, assim, salva a própria alma

Usei esse recurso no meu livro O Clube das Traidoras. Nele, a protagonista é contatada por um Clube secreto que oferece vingança – limpa, discreta e eficiente – contra o seu marido traidor. Tudo que ela precisa fazer é aceitar o clube. O problema? O clube está jogando, e Ana sabe. Ela resiste até… bem, não vou dar spoilers, mas vocês conseguem imaginar o tipo de recusa que aconteceu.

Algumas recusas são altamente positivas. Elas servem para um período de preparação, meditação e retirada que às vezes precede a jornada real. Um bom exemplo é o da história de Jesus e Buda: suas recusas são positivas. Eles estão cruzando um limiar imposto por outros mas também por si mesmos para começar a jornada de renascimento espiritual. Eles dirão sim, mas no momento certo.

O Guardião do Limiar

No momento da recusa, os heróis são postos à prova por figuras poderosas que promovem o medo e a dúvida, questionando sua competência para a jornada. Essas figuras arquetípicas se chamam os Guardiões do Limiar.

Em Guerra nas Estrelas, os tios de Luke Skywalker tentam convence-lo do que ele não pode partir agora. Que precisa terminar o ano, e que precisam dele.

Em A Bela Adormecida, o rei determina que sua filha cresça na floresta, longe do castelo, para que a maldição lançada sobre ela não a atinja. Ele quer impedir que sua sina se concretize.

Em Branca de Neve, os anões tentam protege-la de sua madrasta, e pedem que ela não saia de casa ou fale com estranhos.

Muitas vezes os Guardiões nos querem bem; em outras, querem que não sejamos tolos em acreditar que podemos dar conta da aventura.

(Quem não se lembra do pai de Nemo, que não acreditava que seu menininho pudesse ser valente e completar a jornada?)

(Quem não se lembra do pai de Nemo, que não acreditava que seu menininho pudesse ser valente e completar a jornada?)

Esses personagens podem trocar de máscara e passar de um arquétipo a outro. Alguém que é mentor e amigo pode se tornar um feroz Guardião do Limiar, bloqueando a estrada da aventura com advertências terríveis. Uma mãe superprotetora, por exemplo, ou um amigo invejoso. Sua função é testar a determinação do herói.

Esse personagem desempenha outra função importante: ele faz uma pergunta dramática à platéia: será que o personagem é suficientemente heróico para enfrentar a aventura e sobreviver?

“Essa dúvida é mais interessante do que a certeza de que o herói está sempre à altura de qualquer situação. Essas perguntas criam um suspense emocional para a platéia, que acompanha o progresso do herói com alguma incerteza no fundo da mente. A Recusa do Chamado muitas vezes serve para estabelecer essas dúvidas.”

Mas e se meu chamado for bem mais simples que as histórias mitológicas?

A recusa pode ser um momento sutil, e não grandioso. O importante é que o herói hesite no limiar, que os leitores vivam seu medo, que a platéia perceba o tamanho dos perigos que ele precisará enfrentar.

Espero que tenha ajudado! 

No próximo capítulo, O Encontro com o Mentor

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