A Jornada do Herói: O Mundo Ordinário

O que é a Jornada do Herói? De onde ela surgiu, e como acabou se tornando uma referência para muitos escritores?

 

Vamos voltar no tempo: A década é a de 80. O cenário, Hollywood.

Um dia, um certo cara chamado Cristopher Voegler entra em contato com o maravilhoso livro O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell, e tem uma sacada genial. (Na verdade, a sacada genial foi de Campbell e seu super conterrâneo Carl Jung, mas vamos chegar lá.) Campbell, o maior mitologista da nossa era, diz mais ou menos que as histórias que vemos hoje nada mais são do que recontagens de histórias antigas. Se coássemos e afunilássemos esse tanto de histórias que vemos hoje, chegaríamos a três ou quatro histórias primordiais. Seminais, em seu estado de semente. Histórias-semente.

Sabemos que mitos estão na essência de várias histórias populares (Ex: Perséfone é raptada por Hades, Deus do submundo  –> Bela e a Fera –> Crepúsculo.

São a mesma história? Não.

Falam sobre uma bela jovem, representante da pureza e castidade, enlaçando-se com algúem considerado um perigo ou pária à sociedade? sim.

Voltando a esse esperto analista de histórias de Hollywood: ele estava trabalhando na Disney, e escreveu um memorando de sete páginas chamado: Um Guia prático para o Herói de Mil faces de Joseph Campbell. O memorando ganhou fãs, foi rolando de mão em mão, ele foi ministrando um curso na UCLA sobre o assunto, e filmes acabaram sendo feitos usando esse guia. Resultado: Com o tempo a história vingou.

A Jornada do herói é uma observação,mais que uma invenção. É o reconhecimento de um belo design , um conjunto de princípios que governam e a vida e o mundo das histórias damesma maneira que a química e a física governam o mundo concreto.

O Post de hoje é sobre o estágio Um: O Mundo Ordinário

O Mundo Ordinário

luke-skywalker-tatooineO mundo ordinário, ou mundo comum, é o momento de ambientação ao mundo inicial do herói. Esse mundo tranquilo (ou falsamente tranquilo) serve para estabelecer a base de comparação com a jornada que o herói irá trilhar. O Mundo Especial, lugar para onde ele se destina, só será realmente especial se puder ser contrastado a um mundo cotidiano, de onde o herói é retirado. Mundo Comum é contexto. Base e passado do herói.

Quão diferente ele deve ser do mundo especial?

Sugere-se que seja bastante diferente. Embora o Mundo Comum possa parecer chato e calmo demais, ele apenas esconde as emoções e o desafio que o herói irá encontrar em breve. Os problemas e conflitos do herói já estão lá, só esperando para serem ativados.

Esse mundo deve levantar uma série de perguntas sobre o herói:

– Será que ele vai atingir seu objetivo?

-Superar suas falhas?

-Aprender a lição que precisava?

Tanto o problema interno quanto o externo do herói precisam ser abordados ali. Não precisam ser trabalhados, mas mostrados de alguma maneira que estão lá. Ex.: Anakin Skywalker vivia naquele planeta-deserto com sua mãe naquela vidinha mais ou menos, mas tinha ambição desde pequeno. Queria ser grande, maior e mais importante que um escravo. Queria sair dali.

Como apresentar o seu herói nesse mundo?

É nesse momento da história que o escritor estabelece o vínculo com o leitor. Essas cenas de abertura devem criar uma identificação imediata entre o público e o herói, para que os leitores pensem: ele é gente como a gente. Quero ver no que isso vai dar.

Mas porque você investiria tanto em criar um herói FABULOSO para ele ser no final como o leitor, um mero mortal? A resposta é : gente gosta de gente. Gostamos de ver no outro um pouco de humanidade. Você como escritor está convidando o leitor a entrar na pele do herói, então a empatia precisa ser imediata. Isso significa que o herói tem que ser bonzinho? Oh, não. Que ele precisa ser perfeito? Longe disso. Para que a mágica do vínculo emocional funcione, o herói só precisa ser “relacionável”. Precisa rolar afinidade.

Mesmo se o seu herói for um babaca desprezível, (alguém mais pensou em House?) nós ainda assim entendemos os seus motivos. Nós nos colocamos em seu lugar e concluímos: eu também agiria assim, se tivesse passado pelo que ele passou.

Mas como fazer com que, já do início, crie-se uma identificação do leitor com o herói? A resposta de Vogler é: dando ao herói objetivos, impulsos, desejos e necessidades universais.

Quais são as necessidades/ desejos universais?

Desânimo de tentar mais uma vez e falhar novamente. Resignação por algo que ninguém pode mudar. Amor não correspondido. Vontade de crescer. Vontade de solucionar mistérios. Fome incontrolável  (ok, essa veio de mim – estou azul de fome, e me identificaria com qualquer comilão) e carência de amor. (Bridget Jones, alguém? Contando calorias e cantando All by myself?)

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Você disse carência?

Bons heróis são carentes de alguma coisa. Peeta? Uma família que o aprecie. Edward Cullen? Vida, ou um amor. Katniss? Seu pai. A lista poderia continuar eternamente.

É esse nosso cérebro louco para fechar círculos, decifrar mistérios e fechar Gestalts que nos fará avançar na leitura até descobrir um modo de fazer o herói se sentir pleno outra vez. Sabe aquela necessidade de montar a peça que falta no quebra-cabeças? De ler sorrindo “E viveram felizes para sempre”?

Os elementos faltantes sempre ajudarão a criar um sentimento de solidariedade com o herói. E não é exatamente isso que queremos? Criar empatia?

Não gosta de carente? Que tal apresentar uma falha trágica no seu herói?

O que é um falha trágica? São falhas como orgulho, arrogância e soberba. Por serem dotados de força e acreditarem estar acima das leis divinas e humanas, muitos heróis ignoram advertências e desafiam códigos morais. “Todo herói bem construído e redondo tem em si um vestígio dessa falha trágica,” diz Vogler. É isso que os faz ser tão humanos e reais.

E o que dizer sobre heróis feridos?

Por vezes, um herói pode parecer bem ajustado e controlado, mas esse controle esconde uma ferida psicológica profunda. Rejeição, traição ou desapontamento, dor de cotovelo, e por aí vai. Quer humanizar um herói ? Dê a ele uma ferida, um machucado visível ou um ferimento emocional. Depois que criar esse machucado profundo, saiba que todo o seu comportamento e suas ações serão destinadas a resguardar o machucado. É ali que seu herói é defensivo, fraco e vulnerável. A cicatriz poderá nunca ser descrita no livro, e virar um segredo entre o escritor e seu personagem, mas a ferida ajuda a dar ao herói um sentido de história pessoal e realismo. Preste bem atenção às histórias ao redor: muitas jornadas começaram com o propósito de curar uma ferida e restaurar um psiquismo quebrado.

O tema…

O Mundo Ordinário é o lugar ideal para apresentar o tema da história. Do que se trata sua história? Se você a espremesse, ou precisasse dizer em uma frase sobre o que ela é, o que diria?Amor? Confiança? Traição? Vaidade? Preconceito? Cobiça? Loucura? Ambição? Amizade? É mais “O amor tudo vence” ou “O dinheiro é a raiz de todos os males”?

O tema deve vir no começo. Como, você quem vai dizer. Numa boa história, tudo se relaciona de alguma forma com o tema, e o Mundo Ordinário é o lugar para essa idéia central aparecer pela primeira vez.

E, por fim, a mágica intrínseca dos começos.

Inícios precisam ser mágicos. Precisam ser pensados, ser propositalmente instigantes. O motivo? Os momentos iniciais de um livro são os responsáveis por dar o tom da história e criar a atmosfera que irá prender o leitor. Do título, passando pelas imagens que escolheu para dar vida à narrativa, à primeira frase de abertura, tudo serve para aclimatar o leitor ao mundo que você quer apresentar.

Antigamente, os contadores de histórias começavam seus contos com frases ritualizadas a fim de atrair a atenção da platéia. A super escritora Vania Pereira da Silva, autora de Jegwaká, começa assim o livro de contos que lhe rendeu um prêmio Wattys desse ano:

“As histórias são antigas. De tempos eternos, imemoriais, passadas de geração a geração em determinação sagrada, ordenadas por deuses. Deveriam falar delas reunidos à beira do fogo nas manhãs, em dias frios, ou em sombras frescas debaixo de árvores ao calor da tarde, dentro de casa ou andando pelos caminhos, deveriam ser ensinadas todo o tempo e reafirmadas nos momentos de formação e de iniciação.

São histórias sagradas que explicam a razão de ser das coisas, o porquê das existências, dos agrupamentos ou das separações, dos limites territoriais, as relações e organizações. Essas histórias ensinam sobre permissões e proibições, do que se aproximar e do que se afastar. São regras e ordenações, oferecem o incentivo e segurança. Envolvem proteção e benção, estão atreladas a maldições e mortes.

São histórias vindas dos deuses, ensinadas pelos xamãs, repassadas aos jovens e crianças pelos mais velhos, desenhadas em paredes de cavernas, em utensílios de barro, reafirmadas nas cores e traços dos ornamentos, enterradas com pertences juntos aos mortos. Verdades não questionadas, orientações a serem respeitadas, ensinamentos a serem acreditados e inculcados às outras gerações. “

O que acontece na cabeça do leitor ao se deparar com essa introdução? Não sei quanto a vocês, mas eu me vejo sentando diante da fogueira, pedindo ao amigo que chegue para lá porque a noite vai começar e eu quero ouvir histórias. Quando eu for ler a primeira linha da primeira página, serei imediatamente transportada para esse mundo através da via que a ambientação prévia pavimentou.

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Como público, fomos conduzidos na direção do espírito da jornada. Fomos capturados pela aventura.

É isso que desejamos causar nos nossos leitores, não é?

Espero que tenham experimentado O Mundo Ordinário como eu o experimentei: cheio de ideias e inspiração. Mal vejo a hora de começar uma nova jornada (Já estou cheia de enredos na cabeça)! E vocês? O que acharam desse capítulo, e como ele ecoou em vocês?

Beijos e até o estágio dois, O Chamado para a Aventura.

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